O Catar caberia no estado de Sergipe e sua população é menor que a da Baixada Fluminense. Mesmo assim, ainda está na mesa a possibilidade de, em 2022, o país receber 48 seleções na maior Copa do Mundo da história. Sob a vigência da lei islâmica, o país restringe a liberdade das mulheres e LGBTs e o consumo de álcool em lugares públicos e está prestes a receber hordas de torcedores que cada vez mais incluem pessoas de todos os gêneros e que, no Brasil e na Rússia, não economizaram na bebida. Para completar, essa nação rica em petróleo e tecnologia vive um momento de conturbadas relações com seus vizinhos e sofre um embargo econômico e político por parte de nações poderosas na região, como a Arábia Saudita e o Egito.
Apesar das obras dos oito estádios estarem adiantadas, esses são alguns dos desafios enfrentados pelo Catar e pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) para fazer da primeira Copa do Mundo do Oriente Médio um sucesso. No caminho até lá, já surgiram denúncias de corrupção na escolha do país-sede e de exploração de trabalho escravo de imigrantes nas construções dos monumentais estádios climatizados.
O clima, aliás, provocou uma mudança histórica na Copa do Mundo de 2022: ela será disputada entre novembro e dezembro, no inverno do Hemisfério Norte. Nos meses em que tradicionalmente é realizado, o evento encontraria temperaturas de até 50 graus Celsius no país do Oriente Médio. A decisão impacta campeonatos nacionais de diversos países no Hemisfério Norte e especialmente na Europa, onde os clubes terão que liberar jogadores convocados para seleções nacionais no meio do calendário.
Embargo internacional
Para a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Beatriz Bissio, do Departamento de Ciência Política, o bloqueio sofrido pelo Catar é grave e já causou a preocupação de nações ocidentais como a França e os Estados Unidos, que veem países dos dois lados do impasse como aliados. Na opinião dela, a proximidade da Copa do Mundo é outro motivo para que o conflito ganhe atenção internacional.
A Arábia Saudita e seus aliados afirmam que o Catar está apoiando grupos terroristas, mas Beatriz Bissio questiona essa razão, acrescentando que há também suspeitas de que esses mesmos países têm relações com o terrorismo. "Há estudiosos que entendem que essa é uma cortina de fumaça", explica a professora, que avalia que a aproximação entre Catar e Irã pode ser uma das verdadeiras causas, já que o Irã é o principal adversário dos sauditas no Oriente Médio.
O bloqueio inclui a suspensão do comércio por terra e por mar com o Catar e de parte do tráfego aéreo com o país, sede da gigante Qatar Airways. Outro alvo do boicote é o conglomerado de comunicação Al Jazeera.
Especialista em Copa do Mundo, Pedro Trengrouse, professor da Fundação Getúlio Vargas e consultor da Fifa, acredita que o evento tem potencial para promover o entendimento entre os países da região. Ele sugere que, caso a Copa do Mundo tenha 48 seleções, o Catar pode convidar vizinhos para sediarem alguns jogos e se reaproximar deles.
"Com isso, se faria uma Copa do Oriente Médio. Seria um caminho para resolver o embargo", diz. "O Catar tem uma grande oportunidade para se colocar no plano das relações internacionais em uma posição de muito destaque".
Flexibilidade
Apesar de conservadores, os cataris estão acostumados a ter uma certa flexibilidade, já que cerca de 2 milhões dos 2,7 milhões de habitantes vieram de fora da península atraídos por oportunidades de emprego. "Há uma dupla conduta", define Beatriz Bissio, que explicou que os muçulmanos nacionais do Catar vivem sob as restrições mais rigorosas, e os estrangeiros, principalmente em Doha, a capital, têm mais liberdade.
"Nenhum estrangeiro que vem de outro tipo de cultura se acostumaria a um ambiente muito restritivo. Essa mesma situação se vive nos Emirados Árabes, onde há nos hotéis, clubes e lugares de consumo, um padrão ocidental".
Pedro Trengrouse concorda que haverá mais tolerância com turistas e torcedores que forem ao Catar. "O Catar já tem um tratamento diferenciado para turista, locais onde se pode beber. Os turistas não são sujeitos às mesmas restrições do Catar. Ele já está pronto para receber os turistas com a flexibilidade", afirma. "É a primeira vez que acontece em um país tão pequeno. Os impactos podem ser muito significativos nessa linha de abertura dos costumes, do convívio com o mundo inteiro. Há essa relação de se abrir para o mundo e se apresentar para o mundo inteiro".
O ex-jogador e treinador de futebol, Evaristo de Macedo, que morou no Catar na década de 1980, lembra que os estrangeiros tinham uma liberação especial para ter bebida em casa. Ele esteve em junho no Catar, onde foi homenageado, e acredita que para Copa o emirado e a sociedade do Catar serão mais flexíveis, inclusive com a participação feminina. “As mulheres não participavam dos jogos, mas agora elas têm mais interesse. Eu acredito que terão licença para irem aos jogos. O futebol passou a ser uma paixão de todos não só dos homens, mas das mulheres também", diz.
Direitos Humanos
Já entidades como a Anistia Internacional denunciam as leis do Catar como discriminatórias. Segundo a organização não governamental, as mulheres não têm os mesmos direitos que os homens em relação ao casamento, divórcio, herança, guarda dos filhos, nacionalidade e liberdade de movimentação. Um exemplo é que as mulheres do Catar não transmitem a nacionalidade catari a seus filhos da mesma forma que os homens.
Segundo o Banco Mundial, o Catar é o país do Oriente Médio onde há uma das maiores participações femininas no mercado de trabalho, perdendo apenas para Israel (59%). O percentual chega a 58%, enquanto vizinhos como Irã (16%), Arábia Saudita (22%), Omã (30%) e Emirados Árabes Unidos (40%) têm taxas bem menores. No Brasil, o mercado de trabalho era 53% feminino em 2017. Apesar disso, o Banco Mundial não dispõe de dados sobre que níveis na hierarquia das empresas essas mulheres estão alcançando no Catar.
A Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (Ilga), em seu mapeamento de 2017, incluiu o Catar na lista de países que têm códigos morais que punem relações com pessoas do mesmo sexo, apesar de o sexo entre homens não ser mais considerado crime desde 2004.
De acordo com a associação, o Código Penal do país prevê punição de um a três anos de prisão para quem levar, instigar ou seduzir um homem a praticar "sodomia ou imoralidade", e a quem induzir ou seduzir um homem ou uma mulher a cometer atos ilegais ou "imorais".
Os tribunais do Catar também seguem a lei islâmica (Sharia) o que, segundo a Ilga, "torna judicialmente possível" que homens islâmicos sejam condenados a morte por relações do mesmo sexo. Apesar disso, não foram encontrados casos em que essa punição foi aplicada.
* Colaborou Gilberto Costa, de Brasília
Edição: Carolina Pimentel
Por Vinícius Lisboa - Repórter da Agência Brasil
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